Carlos Drummond de Andrade - E agora, josé ?

A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José ?
e agora, você ?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José ?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José ?

E agora, José ?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora ?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora ?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José !

Sozinho no escuro                                      
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José !
José, pra onde ?

Gil Vicente - Visitas Noturnas

É onírica,
é pesadelo de Goya
a desejada visita
Desde um abraço sonhado
desde meu calor epidérmico
deste teu forte rubor
Enfim!
vem o sono da razão
despertar-nos a carne
São dois o mesmo desejo,
é de ambos o mesmo sonho
ficando dentro de um quadro
A visita,
que se dorme sem querer,
querida,
detém-se na composição, estrutura
que então se perpetua e
fascina
pra não se concretizar.
Mas instalam-se na pele
minha excitada impressão digital
tua impressionada excitação genital
que se acabam
em águas mornas
quando nos acordamos
eu em minha cama
tu na tua
Nessa líquida fronteira
entre sono e vigília
percebemos, ainda quente,
pergunta perfumada no ar:
quem visitou quem?

Arthur Azevedo - Por Decoro

Quando me esperas, palpitando amores,
E os grossos lábios úmidos me estendes,
E do teu corpo cálido desprendes
Desconhecido olor de estranhas flores;

Quando, toda suspiros e fervores,
Nesta prisão de músculos te prendes,
E aos meus beijos de sátiro te rendes,
Furtando as rosas as púrpureas cores;

Os olhos teus, inexpressivamente,
Entrefechados, lânguidos, tranquilos,
Olham, meu doce amor, de tal maneira,

Que, se olhassem assim, publicamente,
Deveria, perdoa-me, cobri-los
Uma discreta folha de parreira.

Fernando Pessoa - Passei toda a noite

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.

Cecília Meireles - Lei

O que é preciso é entender a solidão!
O que é preciso é aceitar, mesmo, a onda amarga
que leva os mortos.

O que é preciso é esperar pela estrela
que ainda não está completa.

O que é preciso é que os olhos sejam cristal sem névoa,
e os lábios de ouro puro.

O que é preciso é que a alma vá e venha;
e ouça a notícia do tempo,
e, entre os assombros da vida e da morte,
estenda suas diáfanas asas,
isenta por igual,
de desejo e de desespero.

Gregório de Matos - A huma dama que estava sangrada-

1. Estava Clóris sangrada,
e Fábio, que a visitava
com ver, que sangrada estava
lhe deu logo outra picada:
ela tão aliviada
ficou, que se ergueu da cama,
dizendo, bem haja a Dama
de Adônis, cuja virtude,
quando me pica em saúde,
eu me sangro, ele derrama.

2. Como na vida acertou,
onde habita a saudade,
extinta a má qualidade,
a enfermidade acabou:
nunca Galeno alcançou
nas sangrias, que me aplica,
quanto o ferro prejudica,
e eu curada com dieta
já sei, que pica a lanceta,
e somente sangra a pica.

3. Fábio me curou do mal,
que na cama lhe informei,
não com xarope de rei,
mas com régio cordial:
se se curar cada qual
somente com seu galante,
há de sarar num instante,
pois quando eu caio doentinha,
não hei mister mais meizinha,
que a meu Mano se levante.

Vinícius de Moraes - Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada.
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Florbela Espanca - Escreve-me…

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d’açucenas!
Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor! Meu coração
Morreu já, e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d’oração!
“Amo-te!” Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d’amor e felicidade!
Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então… brandas… serenas…
Cinco pétalas roxas de saudade…

Castro Alves - A órfã na sepultura

Minha mãe, a noite é fria,
Desce a neblina sombria,
Geme o riacho no val
E a bananeira farfalha,
Como o som de uma mortalha

Que rasga o gênio do mal.
Não vês que noite cerrada?
Ouviste essa gargalhada
Na mata escura? ai de mim!
Mãe, ó mãe, tremo de medo.

Oh! quando enfim teu segredo,
Teu segredo terá fim?
Foi ontem que à Ave-Maria
O sino da freguesia,
Me fez tanto soluçar.

Foi ontem que te calaste...
Dormiste . . os olhos fechaste...
Nem me fizeste rezar! ...
Sentei-me junto ao teu leito,
'Stava tão frio o teu peito,
Que eu fui o fogo atiçar.

Parece que então me viste
Porque dormindo sorriste
Como uma santa no altar.
Depois o fogo apagou-se,
Tudo no quarto calou-se,
E eu também calei-me então.

Somente acesa uma vela
Triste, de cera amarela,
Tremia na escuridão.
Apenas nascera o dia,
À voz do maridedia
Saltei contente de pé.

Cantavam os passarinhos
Que fabricavam seus ninhos
No telhado de sapé.
Porém tu, por que dormias,
Por que já não me dizias
"Filha do meu coração?"
'Stavas aflita comigo?

Mãe, abracei-me contigo,
Pedi-te embalde perdão...
Chorei muito! ai triste vida!
Chorei muito, arrependida
Do que talvez f iz a ti.

Depois rezei ajoelhada
A reza da madrugada
Que tantas vezes te ouvi:
"Senhor Deus, que após a noite
"Mandas a luz do arrebol,
"Que vestes a esfarrapada

"Com o manto rico do sol,
"Tu que dás à flor o orvalho,
"Às aves o céu e o ar,
"Que dás as frutas ao galho,
"Ao desgraçado o chorar;
"Que desfias diamantes
"Em cada raio de luz,
"Que espalhas flores de estrelas

"Do céu nos campos azuis;
"Senhor Deus, tu que perdoas
"A toda alma que chorou,
"Como a clícia das lagoas,
"Que a água da chuva lavou;
"Faze da alma da inocente

"O ninho do teu amor,
"Verte o orvalho da virtude
"Na minha pequena flor.
"Que minha filha algum dia
"Eu veja livre e feliz! ...
"Ó Santa Virgem Maria,
"Sê mãe da pobre infeliz."
Inda lembras-te! dizias,
Sempre que a reza me ouvias

Em prantos de a sufocar:
"Ai! têm orvalhos as flores,
"Tu, filha dos meus amores,
"Tens o orvalho do chorar".
Mas hoje sempre sisuda
Me ouviste... ficaste muda,
Sorrindo não sei pra quem.

Quase então que eu tive medo...
Parecia que um segredo
Dizias baixinho a alguém.
Depois... depois... me arrastaram...

Depois... sim... te carregaram
P'ra vir te esconder aqui.
Eu sozinha lá na sala...
'Stava tão triste a senzala...
Mãe, para ver-te eu fugi...
E agora, ó Deus!... se te chamo
Não me respondes!... se clamo,
Respondem-me os ventos suis...

No leito onde a rosa medra
Tu tens por lençol a pedra,
Por travesseiro uma cruz.
É muito estreito esse leito?
Que importa? abre-me teu peito

- Ninho infinito de amor.
- Palmeira - quero-te a sombra.
- Terra - dá-me a tua alfombra.
- Santo fogo - o teu calor.

Mãe, minha voz já me assusta...
Alguém na floresta adusta
Repete os soluços meus.
Sacode a terra... desperta!...
Ou dá-me a mesma coberta'
Minha mãe... meu céu... meu Deus...

Augusto dos Anjos - A máscara

Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.

Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.

E entre a mágoa que masc’ra eterna apouca
A humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.

Fernando Pessoa - Afinal

Álvaro de Campos

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.   
Sentir tudo de todas as maneiras.   
Sentir tudo excessivamente,   
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas   
E toda a realidade é um excesso, uma violência,   
Uma alucinação extraordinariamente nítida   
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,   
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas   
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.   
   
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,   
Quanto mais personalidade eu tiver,   
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,   
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,   
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,   
Estiver, sentir, viver, for,   
Mais possuirei a existência total do universo,   
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.   
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,   
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,   
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.   
   
Cada alma é uma escada para Deus,   
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,   
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo   
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.   
   
Sursum corda!  Erguei as almas!  Toda a Matéria é Espírito,   
   
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos   
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho   
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!   
Sursum corda!  Na noite acordo, o silêncio é grande,   
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam   
   
Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos   
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.   
Sursum corda!  Acordo na noite e sinto-me diverso.   
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume   
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,   
   
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.   
   
Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço   
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!   
Mãe verde e florida todos os anos recente,   
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,   
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis   
Num rito anterior a todas as significações,   
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!   
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,   
Grande voz acordando em cataratas e mares,   
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,   
Em cio de vegetação e florescência rompendo   
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso   
A tua própria vontade transtornadora e eterna!   
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,   
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,   
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,   
Que perturba as próprias estações e confunde   
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!   
   
Sursum corda!  Reparo para ti e todo eu sou um hino!   
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima   
Volteia serpenteando, ficando como um anel   
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,   
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.   
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente   
Meu coração a ti aberto!   
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,   
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,   
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,   
 
Sou um monte confuso de forças cheias de infinito   
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,   
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une   
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim   
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,   
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira   
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,   
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.   
   
Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.   
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,   
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo   
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos   
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.   
 
Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,   
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo   
De chamas explosivas buscando Deus e queimando   
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,   
A minha inteligência limitadora e gelada.  
 
Sou uma grande máquina movida por grandes correias   
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,   
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,   
E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...   
   
Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito   
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,   
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,   
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço   
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.   
   
Dentro de mim estão presos e atados ao chao   
Todos os movimentos que compõem o universo,   
A fúria minuciosa e dos átomos,   
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,   
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,   
   
A chuva com pedras atiradas de catapultas   
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.   
   
Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio   
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.   
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,   
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,   
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,   
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,   
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,   
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,   
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

Augusto dos Anjos - Gozo Insatisfeito

Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito...
Queimam-me o peito cáusticos de fogo,
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o círculo infinito.

Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciabidade desse gozo!

Fernando Pessoa - Não

Álvaro de Campos

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, veja
Confesso: é cansaço.

Adélia Prado - O vestido

No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.

Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

Clarice Lispector -

Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de pensar.