Mário de Sá-Carneiro - Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos 
Resvalam longemente em procissão; 
Volteiam-me crepúsculos amarelos, 
Mordidos, doentios de roxidão.

 Batem asas de auréola aos meus ouvidos, 
Grifam-me sons de cor e de perfumes, 
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes, 
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos. 

Respiro-me no ar que ao longe vem, 
Da luz que me ilumina participo; 
Quero reunir-me, e todo me dissipo --- 
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além... 

Corro em volta de mim sem me encontrar... 
Tudo oscila e se abate como espuma... 
Um disco de oiro surge a voltear... 
Fecho os meus olhos com pavor da bruma... 

Que droga foi a que me inoculei? 
Ópio de inferno em vez de paraíso?... 
Que sortilégio a mim próprio lancei? 
Como é que em dor genial eu me eternizo? 

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu, 
Foi álcool mais raro e penetrante: 
É só de mim que ando delirante --- 
Manhã tão forte que me anoiteceu

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