É meia-noite... e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
"Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?"
Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
"Oh! minh'amante, onde estás?. . .
Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono! ...
'Stá vazio nosso leito...
'Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu'eu fique
Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh'amante, onde estás? ...
Estrela — na tempestade,
Rosa — nos ermos da vida;
lris — do náufrago errante,
Ilusão — d'alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu! ...
... E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte...
"Oh! minh'amante, onde estás?..."
Miguel Torga - Transfiguração
Tens agora
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...
António Gedeão - Amostra sem valor
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
Lya Luft - Canção na Plenitude
Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força -- que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés -- mesmo se fogem -- retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força -- que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés -- mesmo se fogem -- retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
Cecília Meireles -Tu Tens um Medo
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.
Carlos Drummond de Andrade - A moça mostrava a coxa
A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não mostrava aquilo
- concha, berilo, esmeralda -
que se entreabre, quatrifólio,
e encerrra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea,
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
á visão dos seios claros,
qua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o maximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-dalva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjoo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quando mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia...
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta...
a moça mostrava a nádega,
só não mostrava aquilo
- concha, berilo, esmeralda -
que se entreabre, quatrifólio,
e encerrra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea,
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
á visão dos seios claros,
qua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o maximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-dalva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjoo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quando mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia...
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta...
Pablo Neruda - Esperemos
Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.
Florbela Espanca - Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino, amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino, amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Augusto dos Anjos - A dança da psiquê
A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombara, cedendo à ação de ignotos pesos!
É então que a vaga dos instintos presos
— Mãe de esterilidades e cansaços —
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.
Subitamente a cerebral coréa
Pára. O cosmos sintético da Idéa
Surge. Emoções extraordinárias sinto...
Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombara, cedendo à ação de ignotos pesos!
É então que a vaga dos instintos presos
— Mãe de esterilidades e cansaços —
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.
Subitamente a cerebral coréa
Pára. O cosmos sintético da Idéa
Surge. Emoções extraordinárias sinto...
Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
Cruz e Sousa - Encarnação
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...
Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...
Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!
Álvares de Azevedo - É ela! é ela!
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!...
Eu a vi... minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas...
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! De certo ... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores!...
São versos dela... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores...
Trem de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!
E o eco ao longe murmurou — é ela!...
Eu a vi... minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas...
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! De certo ... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores!...
São versos dela... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores...
Trem de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!
Eugénio de Andrade - O Silêncio
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.
Gonçalves Dias - Amor! delírio - engano
Amor! delírio — engano... Sobre a terra
Amor também fruí; a vida inteira
Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,
— Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d'amor sorveu gostosa.
Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraíso, éden ou templo
Habitamos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricara.
E eu sempre a via!... quer nas nuvens d'oiro,
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava
O círculo da lua, — quer no manto
D'alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cair; nos céus, na terra,
A ela, a ela só, viam meus olhos.
Seu nome, sua voz — ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trépido correr da veia argêntea,
No respirar da brisa, no sussurro
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros inefável; — o seu nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silêncio realçavam,
Os ares e a amplidão divinizando,
Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo
Arfava de prazer meu peito ardente.
Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um lânguido suspiro,
Que vinha lá do peito à flor dos lábios
Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos
A mágica fragrância respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos lábios dela,
Que instantes de prazer me futuravam.
Cada sorriso seu era uma esp'rança,
E cada esp'rança enlouquecer de amores.
E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;
Que afetos melindrosos, que em meu peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! — não, — morra comigo o meu segredo;
Rebelde o coração murmure embora.
Que de vezes, pensando a sós comigo,
Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teu amor um só instante;
— Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas cruéis à praia inóspita
Exânime arrojado? — Eu, que isto disse,
Existo e penso — e não morri, — não morro
Do que outrora senti, do que ora sinto,
De pensar nela, de a rever em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!
Existo; e ela de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez noutros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seus lábios
Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes
Em êxtase divino aos céus me alçaram,
— Que dando à terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportaram.
Existo! como outrora, no meu peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em moles versos.
E ela!... ela talvez nos braços doutrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seu coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, infemo! a goza.
Ela, que eu respeitei, que eu venerava
Como a relíquia santa! — a quem meus olhos,
Receando ofendê-la, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixaram!
Ela, perante quem sentia eu presa
A voz nos lábios e a paixão no peito!
Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,
A força d'homem, o sentir, vontade
Própria e minha dediquei, — sujeita
À voz de alguém que não sou eu, — desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um ósculo frio, por carícias
Devidas dum esposo!...
Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciúme,
Tua funda raiz e a imagem dela
No peito em sangue espedaçar raivoso!
Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,
Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d'eras já passadas se recorda.
Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto
Enrubescer-se ao deparar contigo!
Presa serás também d'atros cuidados,
Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:
Nem menor que o meu mal quero a vingança
Amor também fruí; a vida inteira
Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,
— Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d'amor sorveu gostosa.
Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraíso, éden ou templo
Habitamos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricara.
E eu sempre a via!... quer nas nuvens d'oiro,
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava
O círculo da lua, — quer no manto
D'alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cair; nos céus, na terra,
A ela, a ela só, viam meus olhos.
Seu nome, sua voz — ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trépido correr da veia argêntea,
No respirar da brisa, no sussurro
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros inefável; — o seu nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silêncio realçavam,
Os ares e a amplidão divinizando,
Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo
Arfava de prazer meu peito ardente.
Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um lânguido suspiro,
Que vinha lá do peito à flor dos lábios
Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos
A mágica fragrância respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos lábios dela,
Que instantes de prazer me futuravam.
Cada sorriso seu era uma esp'rança,
E cada esp'rança enlouquecer de amores.
E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;
Que afetos melindrosos, que em meu peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! — não, — morra comigo o meu segredo;
Rebelde o coração murmure embora.
Que de vezes, pensando a sós comigo,
Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teu amor um só instante;
— Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas cruéis à praia inóspita
Exânime arrojado? — Eu, que isto disse,
Existo e penso — e não morri, — não morro
Do que outrora senti, do que ora sinto,
De pensar nela, de a rever em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!
Existo; e ela de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez noutros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seus lábios
Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes
Em êxtase divino aos céus me alçaram,
— Que dando à terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportaram.
Existo! como outrora, no meu peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em moles versos.
E ela!... ela talvez nos braços doutrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seu coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, infemo! a goza.
Ela, que eu respeitei, que eu venerava
Como a relíquia santa! — a quem meus olhos,
Receando ofendê-la, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixaram!
Ela, perante quem sentia eu presa
A voz nos lábios e a paixão no peito!
Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,
A força d'homem, o sentir, vontade
Própria e minha dediquei, — sujeita
À voz de alguém que não sou eu, — desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um ósculo frio, por carícias
Devidas dum esposo!...
Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciúme,
Tua funda raiz e a imagem dela
No peito em sangue espedaçar raivoso!
Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,
Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d'eras já passadas se recorda.
Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto
Enrubescer-se ao deparar contigo!
Presa serás também d'atros cuidados,
Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:
Nem menor que o meu mal quero a vingança
Almada Negreiros - Encontro
Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce á cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce á cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
Cesário Verde - Cinismos
Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!
E eu hei-de, então, soltar uma risada.
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!
E eu hei-de, então, soltar uma risada.
Dante Milano - Salmo perdido
Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
Cora Coralina - Ofertas de Aninha (Aos Moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensino.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.
Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.
a quem o tempo
muito ensino.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.
Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.
Manuel Bandeira - Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .
— "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .
Hilda Hilst - A rainha careca
De cabeleira farta
de rígidas ombreiras
de elegante beca
Ula era casta
Porque de passarinha
Era careca.
À noite alisava
O monte lisinho
Co'a lupa procurava
Um tênue fiozinho
Que há tempos avistara.
Ó céus! Exclamava.
Por que me fizeram
Tão farta de cabelos
Tão careca nos meios?
E chorava.
Um dia...
Passou pelo reino
Um biscate peludo
Vendendo venenos.
(Uma gota aguda
Pode ser remédio
Pra uma passarinha
De rainha.)
Convocado ao palácio
Ula fez com que entrasse
No seu quarto.
Não tema, cavalheiro,
Disse-lhe a rainha
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Ó Senhora! O biscate exclamou.
É pra agora!
E arrancou do próprio peito
Os pêlos
E com saliva de ósculos
Colou-os
Concomitantemente penetrando-lhe os meios.
UI! UI! UI! gemeu Ula
De felicidade
Cabeluda ou não
Rainha ou prostituta
Hei de ficar contigo
A vida toda!
Evidente que aos poucos
Despregou-se o tufo todo.
Mas isso o que importa?
Feliz, mui contentinha
A Rainha Ula já não chora.
Moral da estória:
Se o problema é relevante,
apela pro primeiro passante
de rígidas ombreiras
de elegante beca
Ula era casta
Porque de passarinha
Era careca.
À noite alisava
O monte lisinho
Co'a lupa procurava
Um tênue fiozinho
Que há tempos avistara.
Ó céus! Exclamava.
Por que me fizeram
Tão farta de cabelos
Tão careca nos meios?
E chorava.
Um dia...
Passou pelo reino
Um biscate peludo
Vendendo venenos.
(Uma gota aguda
Pode ser remédio
Pra uma passarinha
De rainha.)
Convocado ao palácio
Ula fez com que entrasse
No seu quarto.
Não tema, cavalheiro,
Disse-lhe a rainha
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Ó Senhora! O biscate exclamou.
É pra agora!
E arrancou do próprio peito
Os pêlos
E com saliva de ósculos
Colou-os
Concomitantemente penetrando-lhe os meios.
UI! UI! UI! gemeu Ula
De felicidade
Cabeluda ou não
Rainha ou prostituta
Hei de ficar contigo
A vida toda!
Evidente que aos poucos
Despregou-se o tufo todo.
Mas isso o que importa?
Feliz, mui contentinha
A Rainha Ula já não chora.
Moral da estória:
Se o problema é relevante,
apela pro primeiro passante
Gregório de Matos - Ao dia do juízo.
O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!
Rompa todo o criado em um gemido,
Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.
Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo
O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!
Rompa todo o criado em um gemido,
Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.
Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo
Machado de Assis - Círculo vicioso
Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:
"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?"...
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:
"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?"...
Fernando Pessoa - Bate a luz no cimo
Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....
Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei !...
Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...
Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis !
Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,
Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada !...
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....
Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei !...
Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...
Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis !
Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,
Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada !...
Cruz e Sousa - Tristeza do Infinito
Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.
Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...
Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.
Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.
Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...
Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.
Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito
Gonçalves Dias - Rosa no mar!
Por uma praia arenosa,
Vagarosa
Divagava uma Donzela;
Dá largas ao pensamento.
Brinca o vento
Nos soltos cabelos dela.
Leve ruga no semblante
Vem num instante,
Que noutro instante se alisa;
Mais veloz que a sua idéia
Não volteia,
Não gira, não foge a brisa.
No virginal devaneio
Arfa o seio,
Pranto ao riso se mistura;
Doce rir dos céus encanto,
Leve pranto,
Que amargo não é, nem dura.
Nesse lugar solitário,
— Seu fadário. —
De ver o mar se recreia;
De o ver, à tarde, dormente,
Docemente
Suspirar na branca areia.
Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seu pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.
Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai:
Vem um'onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flor consigo retrai.
A meiga flor sobrenada;
De agastada,
A virge' a não quer deixar!
Bóia a flor; a virgem bela,
Vai trás ela,
Rente, rente — à beira-mar.
Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flor também.
Se a onda foge, a donzela
Vai sobre ela!
Mas foge, se a onda vem.
Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.
Nisto o mar que se encapela
A virgem bela
Recolhe e leva consigo;
Tão falaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.
Nas águas alguns instantes,
Flutuantes
Nadaram brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cansa
Com monótonos latidos.
Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia:
Toda a praia perlustraram,
Nem acharam
Mais que a flor na branca areia.
Vagarosa
Divagava uma Donzela;
Dá largas ao pensamento.
Brinca o vento
Nos soltos cabelos dela.
Leve ruga no semblante
Vem num instante,
Que noutro instante se alisa;
Mais veloz que a sua idéia
Não volteia,
Não gira, não foge a brisa.
No virginal devaneio
Arfa o seio,
Pranto ao riso se mistura;
Doce rir dos céus encanto,
Leve pranto,
Que amargo não é, nem dura.
Nesse lugar solitário,
— Seu fadário. —
De ver o mar se recreia;
De o ver, à tarde, dormente,
Docemente
Suspirar na branca areia.
Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seu pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.
Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai:
Vem um'onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flor consigo retrai.
A meiga flor sobrenada;
De agastada,
A virge' a não quer deixar!
Bóia a flor; a virgem bela,
Vai trás ela,
Rente, rente — à beira-mar.
Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flor também.
Se a onda foge, a donzela
Vai sobre ela!
Mas foge, se a onda vem.
Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.
Nisto o mar que se encapela
A virgem bela
Recolhe e leva consigo;
Tão falaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.
Nas águas alguns instantes,
Flutuantes
Nadaram brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cansa
Com monótonos latidos.
Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia:
Toda a praia perlustraram,
Nem acharam
Mais que a flor na branca areia.
Mário de Sá-Carneiro - Além-tédio
Nada me expira já, nada me vive ---
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...
Casimiro de Abreu - Amor e medo
Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"
Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!
Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"
Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!
Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...
Fernando Pessoa - Segue o teu destino,
Ricardo Reis
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Leila Míccolis - Ponto de vista
Eu não tenho vergonha
de dizer palavrões,
de sentir secreções
(vaginais ou anais).
As mentiras usuais
que nos fodem sutilmente
essas sim são imorais,
essas sim são indecentes.
de dizer palavrões,
de sentir secreções
(vaginais ou anais).
As mentiras usuais
que nos fodem sutilmente
essas sim são imorais,
essas sim são indecentes.
Bocage - Levanta Alzira os olhos pudibunda
Levanta Alzira os olhos pudibunda
Para ver onde a mão lhe conduzia;
Vendo que nela a porra lhe metia
Fez-se mais do que o nácar rubicunda:
Toco o pentelho seu, toco a rotunda
Lisa bimba, onde Amor seu trono erguia;
Entretanto em desejos ardia,
Brando licor o pássaro lhe inunda:
C'o dedo a greta sua lhe coçava;
Ela, maquinalmente a mão movendo,
Docemente o caralho embalava:
"mais depressa" – lhe digo então morrendo,
Enquanto ela sinais do mesmo dava;
Mística pívia assim fomos comendo.
Para ver onde a mão lhe conduzia;
Vendo que nela a porra lhe metia
Fez-se mais do que o nácar rubicunda:
Toco o pentelho seu, toco a rotunda
Lisa bimba, onde Amor seu trono erguia;
Entretanto em desejos ardia,
Brando licor o pássaro lhe inunda:
C'o dedo a greta sua lhe coçava;
Ela, maquinalmente a mão movendo,
Docemente o caralho embalava:
"mais depressa" – lhe digo então morrendo,
Enquanto ela sinais do mesmo dava;
Mística pívia assim fomos comendo.
Miguel Torga - Apelo
Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....
Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o imite dos mortais.
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....
Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o imite dos mortais.
Carlos Drummond de Andrade - A um ausente
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
Cora Coralina - Aninha e suas pedras
Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
Antero de Quental - Com os mortos
Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…
E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…
E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
Aluísio Azevedo - Pobre Amor
Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Preferira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!
Que te não enterneça esta loucura,
Que te não mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!
Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!
Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Preferira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!
Que te não enterneça esta loucura,
Que te não mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!
Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!
Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!
Machado de Assis - Os Dois Horizontes
Dois horizonte fecham nossa vida:
Um horizonte, – a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, – a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, – sempre escuro, -
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.
No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, – tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dois horizontes fecham nossa vida.
Um horizonte, – a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, – a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, – sempre escuro, -
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.
No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, – tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dois horizontes fecham nossa vida.
José Saramago - No silêncio dos olhos
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
Paulo Leminski - O Hóspede Despercebido
Deixei alguém nesta sala
que muito se distinguia
de alguém que ninguém se chamava,
quando eu desaparecia.
Comigo se assemelhava,
mas só na superfície.
Bem lá no fundo, eu, palavra,
não passava de um pastiche.
Uns restos, uns traços, um dia,
meus tios, minhas mães e meus pais
me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
Mas ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.
que muito se distinguia
de alguém que ninguém se chamava,
quando eu desaparecia.
Comigo se assemelhava,
mas só na superfície.
Bem lá no fundo, eu, palavra,
não passava de um pastiche.
Uns restos, uns traços, um dia,
meus tios, minhas mães e meus pais
me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
Mas ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.
Thiago de Mello - Aprendiz do espanto
Não deflorei ninguém.
A primeira mulher que eu vi desnuda
(ela era adulta de alma e de cabelos)
foi a primeira a me mostrar os astros,
mas não fui o primeiro a quem mostrou.
Eu vi o resplendor de suas nádegas
de costas para mim, era morena,
mas quando se virou ficou dourada.
Sorriu porque os seus peitos me assombraram
o olhar de adolescente desafeito
à glória da beleza corporal.
Era manhã na mata, mas estrelas
nasciam dos seus braços e subiam
pelo pescoço, eu lembro, era o pescoço
que me ensinava a soletrar segredos
guardados na clavícula.
Pedia
já estirada de bruços me chamando,
que eu passeasse meus lábios pelas pétalas
orvalhadas da nuca, eram lilazes,
com as gemas de leve eu alisasse
as espáduas de espumas e esmeraldas,
queria a minha mão lhe percorrendo,
mas indo e vindo, o vale da coluna,
cuidadosa de mim, trés doucement.
Ela me inaugurou o contentamento
inefável de dar felicidade.
Tanto conhecimento só podia
ser de nascença, hoje eu calculo.
Não
era um saber de experiências feito,
mas quanta ciência para transmiti-lo.
Ela era de outras águas, a fontana
de trinta anos, que veio lá do Sena
com a sina de me dar a beber
na aurora dos seus olhos, nos seus peitos,
na boca musical, no mar do ventre,
no riso de açucena, na voz densa,
nas sobrancelhas e no vão das pernas -
o mel antigo da sabedoria
de que a libido cresce quando atende,
de que a tesão se acende na ternura,
que as ante-salas se prolonguem vastas
até estar pronto para entrar no céu.
A primeira mulher que eu vi desnuda
(ela era adulta de alma e de cabelos)
foi a primeira a me mostrar os astros,
mas não fui o primeiro a quem mostrou.
Eu vi o resplendor de suas nádegas
de costas para mim, era morena,
mas quando se virou ficou dourada.
Sorriu porque os seus peitos me assombraram
o olhar de adolescente desafeito
à glória da beleza corporal.
Era manhã na mata, mas estrelas
nasciam dos seus braços e subiam
pelo pescoço, eu lembro, era o pescoço
que me ensinava a soletrar segredos
guardados na clavícula.
Pedia
já estirada de bruços me chamando,
que eu passeasse meus lábios pelas pétalas
orvalhadas da nuca, eram lilazes,
com as gemas de leve eu alisasse
as espáduas de espumas e esmeraldas,
queria a minha mão lhe percorrendo,
mas indo e vindo, o vale da coluna,
cuidadosa de mim, trés doucement.
Ela me inaugurou o contentamento
inefável de dar felicidade.
Tanto conhecimento só podia
ser de nascença, hoje eu calculo.
Não
era um saber de experiências feito,
mas quanta ciência para transmiti-lo.
Ela era de outras águas, a fontana
de trinta anos, que veio lá do Sena
com a sina de me dar a beber
na aurora dos seus olhos, nos seus peitos,
na boca musical, no mar do ventre,
no riso de açucena, na voz densa,
nas sobrancelhas e no vão das pernas -
o mel antigo da sabedoria
de que a libido cresce quando atende,
de que a tesão se acende na ternura,
que as ante-salas se prolonguem vastas
até estar pronto para entrar no céu.
Pablo Neruda - Acontece
Bateram à minha porta em 6 de agosto,
aí não havia ninguém
e ninguém entrou, sentou-se numa cadeira
e transcorreu comigo, ninguém.
Nunca me esquecerei daquela ausência
que entrava como Pedro por sua causa
e me satisfazia com o não ser,
com um vazio aberto a tudo.
Ninguém me interrogou sem dizer nada
e contestei sem ver e sem falar.
Que entrevista espaçosa e especial!
aí não havia ninguém
e ninguém entrou, sentou-se numa cadeira
e transcorreu comigo, ninguém.
Nunca me esquecerei daquela ausência
que entrava como Pedro por sua causa
e me satisfazia com o não ser,
com um vazio aberto a tudo.
Ninguém me interrogou sem dizer nada
e contestei sem ver e sem falar.
Que entrevista espaçosa e especial!
Alice Ruiz - Teu corpo seja brasa
Teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo
um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo
e o meu a casa
que se consome no fogo
um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo
Hilda Hilst - Árias Pequenas. Para Bandolim
Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.
Cruz e Sousa - Música da morte
A música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa ...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lancinante sinfonia
sobe, numa volúpia dolorosa ...
Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina ...
E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina ...
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa ...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lancinante sinfonia
sobe, numa volúpia dolorosa ...
Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina ...
E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina ...
Fernando Pessoa - Como é por dentro outra pessoa
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Manuel Bandeira - A morte absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
Mario Quintana - Poeminha sentimental
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
Antero de Quental - Intimidade
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobicosa,
Es bela - e se te nao comparo a rosa,
E que a rosa, bem ves, passou de moda...
Anda-me as vezes a cabeca a roda,
Atras de ti tambem, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidao ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.
Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!
E nao te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
- mentindo - que me tens amor...
Cecília Meireles - Murmúrio
Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.
Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.
Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.
Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.
Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!
Arthur Azevedo - Eterna Dor
Já te esqueceram todos neste mundo. . .
Só eu, meu doce amor, só eu me lembro,
Daquela escura noite de setembro
Em que da cova te deixei no fundo.
Desde esse dia um látego iracundo
Açoitando-me está, membro por membro.
Por isso que de ti não me deslembro,
Nem com outra te meço ou te confundo.
Quando, entre os brancos mausoléus, perdido,
Vou chorar minha acerba desventura,
Eu tenho a sensação de haver morrido!
E até, meu doce amor, se me afigura,
Ao beijar o teu túmulo esquecido,
Que beijo a minha própria sepultura!
Fernando Pessoa - Ah quanta melancolia!
Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!
Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.
Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!
Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.
Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
Castro Alves - Murmúrios da tarde
Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto,
Ontem à tarde, quando o sol morria.
Do céu azul na profundeza escura
Brilhava a estrela, como um fruto louro,
E qual a foice, que no chão fulgura,
Mostrava a lua o semicirc'lo d'ouro,
Do céu azul na profundeza escura.
Larga harmonia embalsamava os ares!
Cantava o ninho — suspirava o lago...
E a verde pluma dos sutis palmares
Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares.
Era dos seres a harmonia imensa,
Vago concerto de saudade infinda!
"Sol — não me deixes", diz a vaga extensa,
"Aura — não fujas", diz a flor mais linda;
Era dos seres a harmonia imensa!
"Leva-me! leva-me em teu seio amigo"
Dizia às nuvens o choroso orvalho,
"Rola que foges", diz o ninho antigo,
"Leva-me ainda para um novo galho...
Leva-me! leva-me em teu seio amigo."
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!
Inda um calor, antes que chegue o frio. . . "
E mais o musgo se conchega à penha
E mais à penha se conchega o rio...
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!"
E tu no entanto no jardim vagavas,
Rosa de amor, celestial Maria...
Ai! como esquiva sobre o chão pisavas,
Ai! como alegre a tua boca ria...
E tu no entanto no jardim vagavas.
Eras a estrela transformada em virgem!
Eras um anjo, que se fez menina!
Tinhas das aves a celeste origem.
Tinhas da lua a palidez divina,
Eras a estrela transformada em virgem!
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto,
Que bela rosa! que fragrância meiga!
Dir-se-ia um riso no jardim aberto,
Dir-se-ia um beijo, que nasceu na veiga...
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto! ...
E eu, que escutava o conversar das flores,
Ouvi que a rosa murmurava ardente:
"Colhe-me, ó virgem, — não terei mais dores,
Guarda-me, ó bela, no teu seio quente..."
E eu escutava o conversar das flores.
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!"
Também então eu murmurei cismando...
"Minh'alma é rosa, que a geada esfria...
Dá-lhe em teus seios um asilo brando...
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!..."
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto,
Ontem à tarde, quando o sol morria.
Do céu azul na profundeza escura
Brilhava a estrela, como um fruto louro,
E qual a foice, que no chão fulgura,
Mostrava a lua o semicirc'lo d'ouro,
Do céu azul na profundeza escura.
Larga harmonia embalsamava os ares!
Cantava o ninho — suspirava o lago...
E a verde pluma dos sutis palmares
Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares.
Era dos seres a harmonia imensa,
Vago concerto de saudade infinda!
"Sol — não me deixes", diz a vaga extensa,
"Aura — não fujas", diz a flor mais linda;
Era dos seres a harmonia imensa!
"Leva-me! leva-me em teu seio amigo"
Dizia às nuvens o choroso orvalho,
"Rola que foges", diz o ninho antigo,
"Leva-me ainda para um novo galho...
Leva-me! leva-me em teu seio amigo."
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!
Inda um calor, antes que chegue o frio. . . "
E mais o musgo se conchega à penha
E mais à penha se conchega o rio...
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!"
E tu no entanto no jardim vagavas,
Rosa de amor, celestial Maria...
Ai! como esquiva sobre o chão pisavas,
Ai! como alegre a tua boca ria...
E tu no entanto no jardim vagavas.
Eras a estrela transformada em virgem!
Eras um anjo, que se fez menina!
Tinhas das aves a celeste origem.
Tinhas da lua a palidez divina,
Eras a estrela transformada em virgem!
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto,
Que bela rosa! que fragrância meiga!
Dir-se-ia um riso no jardim aberto,
Dir-se-ia um beijo, que nasceu na veiga...
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto! ...
E eu, que escutava o conversar das flores,
Ouvi que a rosa murmurava ardente:
"Colhe-me, ó virgem, — não terei mais dores,
Guarda-me, ó bela, no teu seio quente..."
E eu escutava o conversar das flores.
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!"
Também então eu murmurei cismando...
"Minh'alma é rosa, que a geada esfria...
Dá-lhe em teus seios um asilo brando...
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!..."
Álvares de Azevedo - Adeus, meus sonhos !
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
Florbela Espanca - Súplica
Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.
O meu colo é arrninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!
Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d'astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!
Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! ...
Vem para mim,amor...Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!..
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.
O meu colo é arrninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!
Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d'astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!
Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! ...
Vem para mim,amor...Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!..
Paulo Leminski - Ali
ali
só
ali
se
se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse
se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce
ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece
Pedaços de Lispector
Temperamento impulsivo
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
Lúcida em excesso
“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.
Ideal de vida
“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”
Um vislumbre do fim
“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”
Álvares de Azevedo - Ai, Jesus!
Ai, Jesus! Não vês que gemo,
Que desmaio de paixão
Pelos teus olhos azuis?
Que empalideço, que tremo,
Que me expira o coração?
Ai, Jesus! Que por um olhar, donzela,
Eu poderia morrer
Dos teus olhos pela luz?
Que morte! Que morte bela!
Antes seria viver!
Ai, Jesus! Que por um beijo perdido
Eu de gozo morreria
Em teus níveos seios nus?
Que no oceano dum gemido
Minh'alma se afogaria? Ai, Jesus!
Pelos teus olhos azuis?
Que empalideço, que tremo,
Que me expira o coração?
Ai, Jesus! Que por um olhar, donzela,
Eu poderia morrer
Dos teus olhos pela luz?
Que morte! Que morte bela!
Antes seria viver!
Ai, Jesus! Que por um beijo perdido
Eu de gozo morreria
Em teus níveos seios nus?
Que no oceano dum gemido
Minh'alma se afogaria? Ai, Jesus!
Cora Coralina - Mascarados
Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
Guimarães Rosa - Gargalhada
Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...
Fernando Pessoa - Navegar é preciso, viver não é preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Castro Alves - As Duas Flores
São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
Carlos Drummond de Andrade - No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
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